IDEOLOGIA: AS PRINCIPAIS COLOCAÇÕES DE TERRY EAGLETON E UM POSSÍVEL DIÁLOGO COM HERBERT MARCUSE

INTRODUÇÃO

         Esse trabalho tem por objetivo discutir o papel da ideologia em nossa sociedade, buscando um diálogo entre as diferentes concepções de ideologia construídas a partir das principais colocações de Terry Eagleton; e das contribuições de Herbert Marcuse (1898-1979) no que se refere ao modelo de pensamento ideológico atual. Nosso interesse é o de apontar as diferentes formas de construção dos conceitos que envolvem tais definições, buscando identificar o processo de produção de significados dos mesmos. Para isso, buscaremos suscitar os pressupostos fundamentais dos autores, bem como dialogar com as diferentes concepções de ideologia de cada um deles.

        Nesse sentido, iniciaremos nosso trabalho expondo num primeiro momento a dificuldade do autor – Eagleton – em definir o que seja “ideologia” (1997, p. 15) e os fios condutores que estabelecem a “trama” dos conceitos que envolvem os significados da palavra. Para isso, será necessário um estudo comparado, levando-se em consideração as nuances que emergem da realidade objetiva tratadas pelo autor.

    Num segundo momento, será apresentada ao leitor a contribuição do pensamento marcuseano, principalmente no que se refere a sua teoria crítica da cultura industrial na atualidade, buscando ressaltar alguns elementos que são pertinentes ao tema, como por exemplo, o uso da razão instrumental como modelo ideal de sociedade.

       Dessa forma, tentaremos estabelecer um diálogo entre esses dois autores no intuito de distinguirmos seus elementos constituintes e apontar-mos as bases teóricas de cada um deles.

PRIMEIRA PARTE

          Ao abordar o tema central do seu trabalho no capítulo 1, O que é Ideologia[1], Terry Eagleton mostra a grande dificuldade em se definir uma formulação adequada para o termo, que segundo o autor, se apresenta através de uma serie de “significados convenientes” (1997, p. 15). Porém, o termo ultrapassa os limites do simples significado, que por possuir na sua estrutura mais fundamental a representação dos signos e valores da vida social, podem assumir varias faces e modos de interpretações. Vejamos algumas definições que, segundo o autor, circundam as definições mais elementares que o termo ideologia pode assumir:

a)      o processo de produção de significados, signos e valores na vida social;

b)      um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social;

c)      ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante;

d)     ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante;

e)      comunicação sistematicamente distorcida;

f)       aquilo que confere certa posição a um sujeito;

g)      formas de pensamento motivadas por interesses sociais;

h)      pensamento de identidade;

i)        ilusão socialmente necessária;

j)        a conjuntura de discurso e poder;

k)      o veiculo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo;

l)        conjunto de crenças orientadas para a ação;

m)    a confusão entre realidade lingüística e realidade fenomenal;

n)      oclusão semiótica;

o)      o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura      social;

p)      o processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural.[2]

        Ao definir ideologia como qualquer conjunto de crenças motivadas por interesses sociais, o autor chama a atenção para a representação das formas de pensamento dominante em uma determinada sociedade. Contudo, esse conceito torna universalizadas as definições, e isso implicaria em admitir que ninguém aceita num primeiro momento, que seus modos habituais, são definidos por uma ideologia dita como dominante. Outro ponto importante que o autor chama a atenção é perceber que algumas dessas formulações estão envolvidas em questões de cunho epistemológico, ou seja, depende do conhecimento de mundo, como por exemplo, no que se refere as convicções formadas com os paradigmas racionais as quais estamos constantemente sendo moldados, mais ainda, nem todos os pontos e as formulações acima descritos pelo autor são compatíveis entre si: se admitir-mos por exemplo que ideologia é qualquer conjunto de crenças motivadas por interesses sociais específicos não pode ser interpretado como formas de pensamento dito como dominante. Isso, segundo o autor, revela também o outro papel da ideologia, o da ilusão socialmente necessária. Como podemos ver, não é tão fácil identificar – pelo menos imediatamente – o significado e a aplicabilidade dos mais variados conceitos que a palavra tem.

      Terry Eagleton então define ideologia de seis maneiras diferentes, partindo da mais elementar compreensão do termo. Primeiro, refere-se à ideologia como sendo um “processo material geral de produção de ideias, crenças e valores, e, portanto, assemelha-se ao significado mais amplo do termo cultura” (1997, p. 38). Segundo, o significado social se aproxima do termo composto por uma “visão de mundo”, nesse sentido, refere-se ao modo de produção da vida e dos meios fundamentais que possibilitam a garantia da existência dos indivíduos na sociedade. O terceiro ponto é a garantia da promoção e legitimação dos interesses de determinados grupos sociais, interesses estes que possibilitam apoiar ou desafiar qualquer forma de vida política. Podemos perceber isso na construção de um discurso não verídico, mas persuasivo, capaz de produzir certos efeitos como, por exemplo, a legitimação das leis naturais, responsáveis pela manutenção do status quo social.

            O quarto significado se deve ao fato de se garantir a unificação dessa formação social, e isso não é somente uma lógica de imposição de ideias, mas é a do conteúdo formal dessas ideias estarem preenchidos com crenças que possibilitem manter na sua estrutura uma (falsa) idéia de neutralidade epistemológica. Isso nos leva, segundo o autor, apensar numa quinta definição: a manutenção do modelo ideológico baseado na distorção e na simulação de determinado fato social.

        Com isso, chegamos a sexta e última definição do termo ideologia proposto por Terry Eagleton; as crenças falsas e ilusórias agora não partem mais do interesse da classe dominante, mas da “estrutura material do conjunto da sociedade de um modo geral”, (1997, p. 40) construídas anteriormente. Notamos mais claramente esse fato na teoria de Marx, quando o mesmo se refere ao fetichismo da mercadoria e da produção dos meios materiais de vida. O conceito de ideologia mais amplamente difundido seria aquele que busca por valores e significados voltados para as práticas da manutenção de um modelo dominante de pensamento.  O autor aponta ainda que ideologia não é apenas representações empíricas, mas refere-se a ela como relações vivenciadas pelo homem, e como tal, pode e deve ser alterada.

           Como o próprio Terry Eagleton aponta em seu trabalho, “não é fácil esclarecer as questões epistemológicas que envolvem o termo ideologia” (1997, p. 23) e argumenta ainda que abandonar os elementos que constituem uma teoria de conhecimento do termo, como fizeram alguns pensadores[3] não seria a melhor saída pois ainda nos deparamos constantemente com a questão referente aos valores envolvidos na construção do próprio conceito do termo. A afirmação de que a ideologia seria uma “falsa consciência” da realidade também não é uma afirmação convincente, pois como acabamos de ver a ideologia também é uma forma racional dos seres humanos em geral. O autor nos aponta ainda que se ideologia são “relações vivenciadas” e não representações empíricas (1997, p. 40) nota-se o problema da falsa realidade, pois como algo falso deriva do verdadeiro? Uma possível transformação de nossa realidade envolve a mudança de nossa relação material em face de nossa realidade e para tal seria necessário negar que ideologia seria uma simples representação empírica. Isso nos leva a pensar que o papel da ideologia seria a de atender a certa “ordem” e que ela apresentaria na sua estrutura alguma necessidade específica.

SEGUNDA PARTE

      Sendo assim, cabe agora apresentar nosso segundo autor, onde o mesmo irá abordar de maneira coerente alguns pontos específicos referentes ao tema. Marcuse ao mostrar que a razão nos submeteu a lógica das “necessidades imediatas” aponta objetivamente para o papel da ideologia em nossa sociedade; eis o problema:

[…] a questão sobre quais necessidades devem ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando eles estiverem livres para dar a sua própria resposta. Enquanto eles forem mantidos incapazes de ser autônomos, enquanto forem doutrinados e manipulados (até os seus próprios instintos) a resposta que derem a essa questão a essa questão não poderá ser tomada por sua.

       Marcuse insiste na proposição de que nossa sociedade está já pré-condicionada a reproduzir uma forma de pensamento oriundo do modelo dominante – racional – e que centraliza o poder ideológico. A racionalidade e a instrumentalização dos meios de vida, segundo o autor, agem de maneira a neutralizar qualquer tentativa de subverter a realidade; esta já assimilada pela sociedade industrial. O autor chama isso de “controle social não tecnológica” (1982, p. 30) onde as formas que prevalecem são a da doutrinação por meio da eficiência e das formas imediatas e, portanto, primitivas, de associações que o homem faz diante do processo civilizatório atual.

       Marcuse refere-se á uma forma muito peculiar de “introjeção” que segundo ele, é responsável por assegurar o circulo vicioso em que o homem se produz e ao mesmo tempo reproduz seu modelo de vida. Esse seria o papel da ideologia nos dias de hoje: as estruturas mais fundamentais de nossa cultura como por exemplo, as relações de trabalho, cultura e consumo, estariam já prontas e definidas por um modelo pré estabelecido, onde o mesmo reconhece o “individuo”, mas o reprime dentro de sua própria estrutura psicológica. Marcuse então nos chama a atenção para outro elemento constituinte dessa relação; a assimilação como identificação imediata da realidade é a resposta dada ao processo de idealização dos meios de vida da sociedade industrial. Esse processo todo se dá no horizonte da eficiência no reconhecimento individual, onde as diferenças já não são mais percebidas pelo homem contemporâneo. Não é difícil de se entender que essa absorção/assimilação da ideologia pela realidade “não significa o fim da ideologia”, muito pelo contrário, Marcuse nos mostra que é nesse momento que ideologia mostra toda sua força, principalmente no seu processo de produção (1982, PP. 31-32).

        Notamos esses efeitos no cotidiano de cada sociedade envolta pelo modelo racional de consumo: os produtos produzidos para os bens de consumo, prestação de serviços mais rápidos e eficientes, as formas prontas de atendimento – self-service – mostram uma tentativa eficaz de doutrinação dos estilos de vida; promovem uma falsa consciência imune a sua “falsidade”. O argumento real desse modelo de controle social é a racionalidade e o alto-controle da realidade acrítica, quietista e desarticulada. O que antes numa sociedade pré-capitalista era, como chamado por Marcuse de sociedade bi-dimencional, pois ainda se percebia as formas contrárias de pensamento, agora se configura num momento uni-dimencional, que tem como objetivo esconder os antagonismos e as contradições de determinada sociedade. A interligação dos opostos prejudica a análise social no sentido de atrasar o processo histórico, que busca incansavelmente por mudanças radicais. Tais constatações por si só não muda a realidade, nem tenta desbancar a ideologia que envolve o processo de alienação social, a ideologia deve ser combatida na sua estrutura mais fundamental, ou seja, para mudar o cenário histórico devemos concentrar nossos esforços em combater o modelo econômico hegemônico que insiste em passar por cima de tudo como um rolo-compressor.

       Marx e Engels já nos alertavam desse modelo hegemônico em A Ideologia Alemã quando diziam que as ideias dominantes são na verdade as ideias de uma classe dominante (2006. p. 80). Isso deixa claro o papel da ideologia em nossa época, onde o que prevalece são as ideias de um determinado modelo de pensamento oriundo do capitalismo neoliberal. A definição apresentada por Eagleton no começo de nosso trabalho de que a ideologia como “formas de pensamento motivadas por interesses sociais” encontra certo diálogo com as definições de Marcuse, principalmente no que toca a questão da reprodução das ideias. Percebemos melhor esses interesses na sociedade industrial, onde a utilização incessante de técnicas reprodutivistas e de uma ciência estéril estimula o consumo desenfreado.

     Outro momento que Marcuse aponta é a chamada “vida administrável” (1982, p. 62) desenvolvida durante o Estado de Bem-Estar Social, que se apresenta, segundo o autor, como um Estado de permanente ausência de liberdade. Tal constatação é importante em nosso trabalho visto que ao tratar de políticas que envolvem a administração do tempo, da quantidade, qualidade das mercadorias que envolvem necessidades individuais e administram tudo isso com o auxilio da inteligência (noção de consciente e inconsciente) revelam o caráter ideológico que contrasta com a realidade social. Essa forma de “pluralismo” aponta uma tendência predominante de tentativa de equilíbrio entre os poderes que envolvem tal processo. Entretanto, tal equilíbrio esconde as contradições mostrando a sua força ideológica de encobrimento da realidade. Essa força coesiva estimula a perda de movimento, criando seres mais adaptados ao meio e despreparados para uma eventual tentativa de transformação.

      O autor nos mostra que uma democracia auto-determinada parece ser a forma mais eficiente de um sistema de dominação (1982, p. 66). Os contrários que antes serviam como um empecilho para a democracia, agora é facilmente fagocitada por um modelo hegemônico, propondo uma integração da sociedade. Por esse motivo, os padrões estéticos que definem quem fomos, quem atualmente somos e quem seremos formam padrões que não são diferentes de qualquer outro mas repetidos na medida em que as necessidades são alimentadas com produtos e bens de serviços.

       Logo, a produtividade constante e crescente, somado ao alto padrão de vida não irá depender do externo, pois tudo isso já fora absorvido pela lógica dominadora e eficaz; por isso as instituições públicas facilmente se adaptam a “nova” realidade, propondo soluções fáceis e mais imediatas. A liberdade que antes servia como um meio de fuga para o externo desse plano, agora se vê destituída de seu caráter subversivo antecipando seu fracasso social emancipatório.

CONCLUSÃO

      Ao discutir o tema Ideologia podemos circundar alguns pontos importantes: o presente termo não é definido apenas pelos seus inúmeros significados, embora a construção epistemológica seja importante, ou pelos menos, necessárias num primeiro momento, as possibilidades de encontros com a realidade é que mais chama a atenção dos autores. O desenvolvimento de uma determinada forma de ideologia é reflexo das relações materiais concretas, e isso é mais importante que outros significados.

        Observar os processos reais em que certa sociedade se desenvolve, principalmente os que se baseiam em um modelo econômico dominante – o neoliberalismo – seria o ponto principal de nossa investigação. Não podemos relativizar algo que é concreto, real e portanto possível de críticas, sem levar em consideração que a ideologia tem por objetivo justificar o domínio exercido, de manter coesa a sociedade, apresentando as inversões de causa e efeito, numa tentativa de mostrar o real como homogêneo, permitindo com isso evitar os conflitos e exercer a dominação.

      Como estrutura ideológica, pensamos que a construção das ideias deriva das representações, da consciência diretamente entrelaçada com a atividade material, e por isso deve de analisada mais profundamente nas suas estruturas.  A tentativa de defrontar o papel da ideologia em nossa sociedade com a realidade, não nos dá ainda uma forma pronta e imediata de crítica da realidade; e é justamente isso que queremos apontar como crítica, mas nos possibilita uma tentativa de recuperar o objeto dessas categorias: parte-se da realidade indo para a filosofia, e não da filosofia para a realidade. Inverter essa lógica é extremamente necessário pois possibilita abordar o tema partindo de um outro ponto de vista.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

EAGLETON, T. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo; Unesp/Boitempo, 1997. pp. 15-40

MARCUSE, H, A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro; Zahar, 1982. pp. 13-91

MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo; Martin Claret, 2006.


[1] Cf Terry Eagleton. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo; UNESP/Boitempo, 1997, PP. 15-40.

[2] Cf, nota: Terry Eagleton. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo, Unesp, Boitempo, 1997, pp.15-16

[3] O autor refere-se à alguns pensadores políticos como Alex Callinicos, Goran Therborn, Martin Seliger e Rosalind Coward.

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